sexta-feira, 25 de fevereiro de 2011

Alice no País das Maravilhas

 CRÓNICA DE NUNO CRATO
(Fevereiro de 2010)


Se Lewis Carroll não tivesse escrito as duas aventuras de Alice, não seria conhecido por esse pseudónimo mas sim pelo seu verdadeiro nome: Charles Lutwidge Dodgson (pronuncia-se dód-san). E se não tivesse escrito esses dois livros e vários outros de histórias maravilhosas não seria conhecido como escritor, mas talvez como fotógrafo - Dodgson foi um dos primeiros a encarar a fotografia como uma arte e não como um mero registo de imagens. Os seus retratos ainda hoje são pungentes, em especial as imagens de crianças em poses melancólicas.
E se não tivesse sido nem escritor nem fotógrafo seria certamente conhecido como um dos vultos da época na sua disciplina: a matemática.
Todo o humor absurdo que perpassa por "Alice no País das Maravilhas" e pelas suas outras obras de ficção é um humor que muitos matemáticos reconhecem como seu. Os trocadilhos e as pequenas brincadeiras revelam uma preocupação com o significado das palavras e expressões e a construção de contradições derivadas de ambiguidades. É um uso da lógica e da matemática que ainda hoje surpreende os leitores.
Quem esteja um pouco mais desperto para a leitura de temas científicos verá também deliciosas referências a tópicos eruditos de matemática, lógica e astronomia.
Logo no princípio, quando Alice cai pelo buraco do coelho e pergunta a si própria quantas milhas terá caído, quando pensa que se aproxima do centro da Terra e procura recordar-se da dimensão do planeta, ela está a protagonizar uma metáfora científica muito discutida na época vitoriana - na realidade, uma metáfora que vem da antiguidade clássica.
Perto do século VIII a.C., o poeta grego Hesíodo tinha imaginado uma bigorna a cair dos céus e escrito que ela demoraria nove dias a atingir a Terra. Deixando-a cair da Terra para os infernos, ela demoraria também nove dias a cair no fundo do universo. O tema foi retomado na era romana pelo historiador e ensaísta grego Plutarco (46-120). Sabendo que a Terra é esférica, Plutarco perguntou o que aconteceria a um corpo que caísse por um buraco que levasse a uma Terra oca: pararia no centro? O problema ocupou muitos filósofos e homens de ciência.
Galileu foi o primeiro a solucioná-lo correctamente. Imaginou um túnel que atravessasse a Terra de um lado ao outro, passando pelo seu centro. Um objecto largado à superfície desceria aceleradamente pelo túnel até alcançar o centro. Nessa altura, continuaria a sua viagem, mas em velocidade decrescente, até alcançar o outro extremo do planeta. Nesse momento estancaria e, deixado livremente, voltaria a cair pelo túnel, acelerando, passando pelo centro da Terra, desacelerando e regressando ao ponto de partida. Deixado a si próprio, esse corpo oscilaria indefinidamente, entre um extremo e outro do planeta.
Galileu estava certo, desprezando o atrito do ar e o movimento da Terra. O problema voltou a ser discutido por Newton e Euler, e continua a sê-lo nos dias de hoje como exercício de mecânica e de cálculo.
Feitas as contas, Alice demoraria 42 minutos a atingir o centro da Terra e outro tanto a reaparecer nos antípodas - nas "antipatias" segundo a brincadeira de Lewis Carroll.
As referências científicas atravessam todas as aventuras de Alice.
Nada como lê-las, pensá-las e revisitá-las.


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